1. DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
A Pessoa Jurídica não se confunde com seus sócios. Assim estabelece
o art. 49 do Código Civil[1]:
Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Ou seja, em caso de prejuízo ou responsabilidade a Pessoa Jurídica que vai ser demandada, respondendo com seu patrimônio.
A fim de prevenir o uso ilícito da Pessoa Jurídica, a legislação criou o incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, para que as responsabilidades fossem estendidas aos sócios. Todavia, para haver essa Desconsideração é necessário que ocorra o abuso da Pessoa Jurídica.
Procura-se inibir o desvirtuamento da pessoa jurídica no sentido de não ser utilizada por seus sócios para causar prejuízo a terceiros.
Como é cediço, a utilização subversiva da pessoa jurídica extrapola a sua função social, preceitos legais, e não menos importante a boa-fé que rege toda e qualquer relação jurídica.
Ocorre que na maioria dos casos, o credor se vê impedido de satisfazer o seu crédito, haja vista o esvaziamento patrimonial perpetrado pelos seus controladores ou até mesmo o desvio de ativos em prol deles.
Logo, o presente instituto é de grande valia para não se perpetrar injustiças e enriquecimento ilícito por parte de gestores criminosos, de maneira que se supera a autonomia patrimonial existente entre a pessoa jurídica e seus sócios, atingindo o patrimônio daqueles que a constituíram.
Cumpre salientar que os efeitos da desconsideração são inter partes.
Neste sentido, Ramos[2] explica que “a aplicação da teoria da
desconsideração implica, tão somente, uma suspensão temporária dos efeitos da personalização num determinado caso específico, não estendendo seus efeitos para as demais relações jurídicas das quais a pessoa jurídica faça parte.”
Vale lembrar o teor no Enunciado n.º 7 do Conselho da Justiça Federal[3], que dispõe que “só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido”.
Referida construção é lógica e faz justiça, pois não se pode punir aquele em nada contribuiu para o ato ilícito, ressalvados os casos em que tenha obtido vantagem do ato ou que tenha se omitido propositalmente.
2. DA MODALIDADE INVERSA
No que se refere a desconsideração inversa da personalidade jurídica, nada mais é do que superação patrimonial da sociedade empresária, a fim de que ela responda pelas obrigações adquiridas pelos seus sócios-administradores, sob os mesmos requisitos encartados no art. 50 do Código Civil[4], quais sejam:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
- – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
- – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
- – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
O § 3º, introduzido pela Lei 13.874/2019, consagrou a desconsideração inversa da personalidade jurídica, que antes era fruto de construção doutrinária e jurisprudência.
A questão acima além de trazer segurança jurídica e inviabilizar a corriqueira espécie de fraude, que ocorria principalmente entre grupo familiares, responsabiliza a empresa pelas dívidas contraídas pelo seu controlador.
Nesse sentido, vale ressaltar trecho do voto proferido pelo Desembargador Diaulas Costa Ribeiro, TJDFT:
“3. A desconsideração inversa ou invertida torna possível responsabilizar a empresa pelas dívidas contraídas por seus sócios e tem como requisito o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou a confusão patrimonial (CPC, art. 133, § 2º; CC, art. 50). 4. Trata-se de medida excepcional, cabível quando se comprova que o devedor (pessoa física) utilizou-se indevidamente da pessoa jurídica para resguardar bens e valores de seu acervo pessoal, a fim de esquivar-se de seus compromissos financeiros.”[5]
Nessa hipótese, o sócio abusa da Personalidade Jurídica para não
cumprir seus deveres, ou seja, transfere seus patrimônios para a Pessoa Jurídica com a intenção de não pagar suas dívidas, dessa forma, contraindo a dívida para empresa que está sob seu controle direto ou indireto.
Revela-se útil o referido instituto para coibir referidas condutas
ilícitas, frustrando a manobra fraudulenta, permitindo ao credor que se satisfaça à custa do patrimônio social.
Uma das primeiras ocorrências de que se tem relato a respeito desconsideração da personalidade jurídica na modalidade inversa, tratou-se do caso First National Bank of Chicago v. Trebein Company, julgado em 1898, que teve a seguinte decisão, in verbis:[6]
First National Bank of Chicago v. F.C. Trebein Co., um certo F.C. Trebein, devedor insolvente, constituiu com a mulher, a filha, o genro e o cunhado uma pessoa jurídica a que transferiu todo o patrimônio. Das seiscentas quotas da sociedade, somente quatro não lhe pertenciam pessoalmente, pertencendo a mulher e aos parentes mencionados. A Corte decidiu, favoravelmente à pretensão dos credores de Trebein, que desejavam executar o patrimônio da sociedade, que esta era em verdade o proterio F.C. Trebein sob diversa forma e que a fundação da sociidude e a transferência a esta do patrimônio do devedor era, no caso, tão pouco relevante quanto seria o fato de o devedor mudar de roupa. (obra citada, Ed. Saraiva, São Paulo,1979, p. 275).
Vale destacar também que a presente medida também vale para empresas de mesmo grupo econômico, que se utilizam dessas práticas fraudulentas para fraudar credor.
Ou seja, a constituição de várias empresas que pertencem ao mesmo grupo controlador também podem sofrer a desconsideração inversa da personalidade jurídica, atingindo o patrimônio de outras empresas pertencente à aquele grupo.
Necessário sempre gizar que a presente medida só pode ser deferida mediante prova robusta da existência de abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial entre os bens do devedor e a sociedade a ser atingida.
3. REQUISITOS MATERIAIS E PROCESSUAIS
Inicialmente, é necessário frisar que apenas a ocorrência de prejuízo econômico a terceiro não é suficiente para se ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica.
A legislação civil enumera os requisitos legais que autorizam a aplicação do instituto, abarcando a teoria maior nesse caso, diferindo do Código de Defesa do Consumidor, que adotou a teoria menor, cuja vertente exige apenas a insolvência da pessoa jurídica.
Os requisitos estão encartados no art. 50 do Código Civil mais acima destacado.
A leitura perfunctória do referido artigo nos traz como principal requisito para a aplicação da desconsideração, o abuso da personalidade jurídica pelos sócios ou gestores.
Por sua vez, o mesmo dispositivo elencada que o referido abuso ocorre com a verificação do desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
Cavalin[7] cita como exemplos de uso abusivo da pessoa jurídica a constituição de sociedades fictícias; operações societárias com fins dissimulados; celebração de negócios jurídicos espúrios; promiscuidade entre o patrimônio da sociedade e o dos sócios.
Para Farias[8] “o desvio de finalidade tem ampla conotação e sugere uma fuga dos objetivos sociais da pessoa jurídica, deixando um rastro de prejuízo, direto ou indireto, para terceiros ou mesmo para outros sócios da empresa”.
No tocante a confusão patrimonial, Farias[9] aponta tratar-se da hipótese em que o “sócio utiliza o patrimônio da pessoa jurídica para realizar pagamentos pessoais e vice-versa, atentando contra a separação das atividades entre empresa e sócio”.
Por fim, o incidente de desconsideração poderá ser requerido a qualquer tempo, por meio de incidente processual, mesmo quando se tratar da hipótese “inversa”, conforme preconiza o art. 133, do CPC[10]:
Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Em resumo, a desconsideração da personalidade jurídica não pode ser aplicada de ofício pelo Juiz, dependendo de requerimento pela parte interessada ou pelo Ministério Público. Inclusive, as hipóteses da tutela de urgência também são cabíveis nos pedidos iniciais, a fim de evitar que ocorra a dilapidação patrimonial, sendo de bom grado sempre pedir o arresto dos bens que pertencem ao grupo econômico.
4. CONCLUSÃO
A legislação brasileira tem por base a livre iniciativa e o estímulo
empresarial privado da economia, podendo o particular ou aquele que deseja empreender constituir uma pessoa jurídica para desenvolver sua atividade, e isso fica claro com a redação do art. 49-A, do Código Civil, dispositivo esse incluído pela Lei nº 13.874, de 2019.
São várias os tipos societários que a legislação abarca, mas o uso
abusivo e ilícito delas poderá acarretar a responsabilidade do controlador com seus bens pessoais e vice-versa.
Mesmo tendo a proteção legal dos bens pessoais no caso das
sociedades limitadas, ela também não escapa da hipótese da desconsideração da personalidade jurídica e nem mesmo inversamente.
Referida medida tem cunho excepcional que autoriza o juiz atingir
episodicamente a personalidade da pessoa jurídica diversa da relação processual, para que haja a reparação do dano causado ao credor.
Nesse sentido, busca-se “impedir qualquer ato fraudulento praticado
pelo devedor, que prejudique os direitos de terceiro, […], caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial entre os bens do devedor e a sociedade a ser atingida.”[11]
[1] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.
[2] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
[3] Conselho da Justiça Federal. Jornada de Direito Civil I, enunciado n.º 7. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/653.
[4] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 29/01/2022.
[5] Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão 1367498, 07200527220218070000, Relator: DIAULAS COSTA RIBEIRO, Oitava Turma Cível, data de julgamento: 26/8/2021, publicado no DJE: 9/9/2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-emhttps://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/personalidade-juridica/desconsideracao-inversa-da-personalidade-juridica-2013-abuso-da-personalidadetemas/jurisprudencia-em-detalhes/personalidade-juridica/desconsideracao-inversa-da-personalidadehttps://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/personalidade-juridica/desconsideracao-inversa-da-personalidade-juridica-2013-abuso-da-personalidadejuridica-2013-abuso-da-personalidade.
[6] Fabiano Eustáquio Zica Silva e Antônio Augusto Gonçalves Tavares. Desconsideração da personalidade jurídica: estudo do caso caoa. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=a378383b89e6719e.
[7] CAVALIN, Ana Carolina Dihl. Desconsideração da personalidade jurídica na sociedade empresária limitada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3507, 6 fev. 2013. Disponível em:<http://jus.com.br/revista/texto/23664>.
[8] FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direito civil : teoria geral. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. Pag. 396.
[9] Op. Cit.
[10] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de processo civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
[11] Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão 1352316, 07024532320218070000, Relator: LEILA ARLANCH, Sétima Turma Cível, data de julgamento: 30/6/2021, publicado no DJE: 23/7/2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-emhttps://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/personalidade-juridica/desconsideracao-inversa-da-personalidade-juridica-2013-abuso-da-personalidadetemas/jurisprudencia-em-detalhes/personalidade-juridica/desconsideracao-inversa-da-personalidadehttps://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/personalidade-juridica/desconsideracao-inversa-da-personalidade-juridica-2013-abuso-da-personalidadejuridica-2013-abuso-da-personalidade.